Lembranças da meia noite.
As fantásticas “lambanças” do Escoteiro Kiabo. (com
k mesmo, risos).
Hoje tirei o dia para rir. Costumo fazer isto. Faz
bem. Lembrei-me de tantas coisas divertidas do passado que esqueci as tristes.
Bom isto. Que elas vão para outras plagas, bem longe onde os bons ventos sopram
e as diluem no ar. Não dizem que rir é o melhor remédio? Pois acredito nisto e
lembrar-me do Kiabo é dar risadas. Não que ele fosse um humorista. Nada disto.
Que ele aprontava umas e outras lambanças era fato conhecido. Não tenho
certeza, mas foi por volta de 1946 que sua família mudou para perto da minha.
Ainda não tinha entrado para os lobinhos. Nós morávamos do outro lado da
“linha” (estrada de ferro) onde era mais barato o aluguel. Quando vi descarregarem
a mudança um menino de cabelos incrivelmente loiros, olhos azuis, magro como um
palito desceu do caminhão (um velho Ford de guerra), me olhou e disse: Meu
Deus, como você é feio! Fui obrigado a rir. Não era assim tão feio. Estava com
seis anos e ele também.
Ficamos amigos, pois esta é uma idade que todo mundo
é amigo. Ele não era tão bom no jogo das panelas da bola de gude, mas era um
craque no finquinho. Seu pai tinha feito para ele uma Manivela enorme, e mesmo
com aquela idade conseguia empinar um papagaio nas alturas. Aquilo sim era bom.
Nas alturas, quanto mais alto maior a vitória de empinar. Hoje todos só querem
cortar a linha do outro. Malvadeza pura! Comecei a ver a verdadeira face do
Kiabo com o passar do tempo. Gostava de fazer maldades. Não era tão mau não,
mas isto o divertia. Só ele, pois não se preocupava com os outros pensassem
dele. Amarrar gatos uns nos outros era comum. Uma vez colocou uma bombinha
amarrada com um barbante em uma Pomba, acendeu e soltou a pomba no ar. Amarrar
cachorras no cio em poste e em outro poste amarrar carne vermelha era sua
diversão favorita. A cachorrada não sabia se iam na carne ou na cachorra!
Risos.
Quando entrei para os lobinhos já não éramos tão
amigos. Ele nunca se interessou. Disse-me que quando fizesse onze entraria para
os escoteiros. Lobinhos para ele era “pá de vaca” como chamavam os meninos
molezas na época. O tempo passou. Kiabo aprontando. Um sábado lá estava ele com
seu pai no Grupo Escoteiro. O Chefe da tropa apresentou Kiabo a todo mundo. Foi
para a Patrulha Morcego. Eu não nutria muita simpatia pelos morcegos. O Monitor
o Miraldino era metido à beça. Achava que só ele sabia, sua Patrulha era a tal
e mesmo sendo advertido diversas vezes pela chefia ele não melhorava. Até que
nos seniores ficamos grandes amigos. Mas isto é outra história. As lambanças do
Kiabo tiraram Miraldino do sério. No acampamento trocou o sal pelo açúcar.
Colocou uma lesma no óleo de cozinha. Fritou minhocas junto com as linguiças.
Montou uma cadeira de campo e o primeiro que sentou levou o maior tombo e
ainda caiu um jarro d’água em sua cabeça (colocado em forma de armadilha em uma
árvore).
Kiabo aprontou e muito. Para contar teria que
escrever muitas folhas e aqui não dá. Fica para outra ocasião. Mas não posso
deixar de contar a sua maior proeza. A cidade inteira parou e quase um desastre
enorme poderia ter acontecido. Sem ninguém saber Kiabo preparou quinze
bandeirolas tipo pirâmide feitas de papel celofane vermelho, amarrou em 15
varas de bambus de um metro e meio bem esticadas com varetas. Foi para a
Pastoril (um bairro afastado da cidade) e lá fincou cada vara com uma
bandeirola ao lado da linha de trem, a cada vinte passos. Na ultima lá estava
ele. Uniformizado, caqui, chapelão, um par de bandeirolas de semáforas a mão. A
composição apareceu na curva. Quatro locomotivas a diesel. Mais de duzentos
vagões carregados de minério de ferro vindo de Itabira. Um comboio de mil
metros ou mais. Correndo a sessenta por hora aumentando a velocidade. Uma cobra
gigantesca serpenteando o Rio Doce que visto de longe seria um espetáculo inesquecível.
O maquinista buzinou assustado ao ver aquelas bandeirolas vermelhas. Mais a
frente o Kiabo fazendo sinais de semáforas transmitindo o S.O.S. e pulando!
Um susto enorme tomou conta do maquinista. Gritou
para seu auxiliar. Ambos acionaram os freios das quatro locomotivas e de vários
vagões. Um barulho infernal que foi ouvido por toda a cidade. Um trem assim não
para rápido. Leva pelo menos um quilometro para parar ou mais. Kiabo se
deliciava, ria e pulava. Consegui dizia ele (isto me contou mais tarde). Ele
fazia suas lambanças e não contava a ninguém. Quando o trem parou Kiabo não
correu. Ficou no lugar. Centenas da cidade acorreram. Gente da alta cúpula da
estrada de ferro chegaram esbaforidos. Pensavam ter havido um desastre. O
maquinista veio correndo e abraçando Kiabo. Um herói meu garoto, viva você.
Depois ficamos sabendo. Alguém abriu uma porteira e uma centena de vacas
ficaram na linha algumas deitadas, e o trem parou a menos de cinquenta metros
delas.
A cidade toda ovacionou Kiabo. O Chefe da tropa e a
Patrulha desconfiados. Quem abriu a porteira? Logo ali na estrada de ferro?
Perguntas vazias. Kiabo foi festejado no colégio. A cidade toda batia palmas
quando ele passava. Uns meses depois seu pai foi transferido para Itabira. Era
encarregado de manutenção da estrada de ferro. Kiabo foi junto. Perguntei a ele
quem poderia ter aberto a porteira. Ele ria. Não falou nada. Nunca falou. Sumiu
o Kiabo. Boas lembranças de suas lambanças ficaram em minha mente. Nunca mais
ouvi falar dele, mas com certeza a cidade ficou mais quieta, mais pacata, e
ninguém tinha medo de alguma armadilha pelo caminho depois que o Kiabo foi
embora. Graças a Deus!
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