Crônicas de
um Chefe Escoteiro.
Minha
incrível e saudosa Cascavel da pele vermelha.
Não se enganem. Foi mesmo uma grande
amiga. Não falo do ser humano, por favor! Falo de uma cascavel que morava nas Colinas
do Pastor. Acho que foi em um inverno rigoroso que a conheci. Foi assim
subitamente e não esperava. Andando na mata espessa fiquei preso com o pé
direito entre dois galhos secos. Tentava sair e não conseguia. Não era longe do
nosso campo de patrulha. Porque saí só? Quer saber mesmo? Fui procurar um lugar
mais calmo para falar com o Miguel. Risos. Acho que vocês sabem quem é o Miguel
e não dá para levar companhia. Estava eu lá olhando a folhagem de uma bela
Aroeira Pimenteira, enorme, parecendo ter mais de duzentos anos de idade quando
ouvi o chocalho. Nem deu tempo para fazer os “entretantos”. Sabia que o
chocalhar de um chocalho é pernas para quem vos quero. Não deu outra dois
passos e fiquei preso com o pé direito e o esquerdo ali se oferecendo para uma
mordidinha que iria me fazer feliz para sempre lá no céu.
Eu sabia que muitos falam mal das
cobras. Dizem que são animais traiçoeiros e devemos ter o máximo de cuidado. Eu
nunca tive medo delas. Sabia que só nos atacam quando se sentem ameaçadas ou
algum infeliz pisa em cima delas. Até aquele dia tinha visto inúmeras
Cascáveis. Nossa patrulha tinha um convenio com o Instituto Butantã em São
Paulo. Eles nos mandavam as caixas de madeiras apropriadas e era só entregar ao
Chefe da Estação da Vitória Minas e ele enviava. Em troca nos mandavam soro antiofídico
que era doado para o hospital local. A Cascavel sempre foi a mais temida. Seu
chocalho arrepiava os mais valentes dos Escoteiros e até o Zé Morto Vivo quase
morreu quando foi picado e olhe, estava com um trinta e oito, um fuzil Mauser,
duas facas e dois punhais. Não morreu, pois o humilde Zé Morto Vivo tinha uma
reza “braba”. Portanto vamos dar um crédito as Cascavéis. Elas avisam e muito.
Só um idiota e um imbecil não foge do seu chocalho.
Falando em chocalho dizem que a gente
pode saber quantos anos ela tem. Comentam a boca pequena que cada anel, ou
melhor, cada guizo é formado quando ela troca de pele. A pele sai no sentido da
cabeça para a cauda e ai, uma parte fica presa formando um dos anéis. Comentam
também que a vida útil (ou inútil para quem já foi mordido e não foi desta para
melhor) troca de pele três ou quatros vezes por ano. Portanto uma cobra com
nove anéis no chocalho tem provavelmente entre dois e três anos. Mas vamos com
a história da minha querida Cascavel da Pele Vermelha. Ela sim já me avisara
que estava ali. Que eu me mandasse rápido pela trilha que tinha vindo. Mas o pé
direito preso e ainda colocando as calças no lugar certo só me cabia rezar. Foi
então que um Sapinho-cururu passou por mim e não viu a linda cascavel de bote
armado. Bela refeição ela comeu.
A cobra se esticou toda. O pobre do
sapinho tentava mesmo vivo sair da barriga dela. Não conseguia. Fiquei com pena
do sapinho. Tão miudinho e servindo de lauta refeição para Dona Cascavel.
Consegui me desvencilhar e me mandei dali. Uma hora depois vi de novo a
Cascavel da pele vermelha na porta do nosso campo de patrulha. Todos gritaram –
Mata! Mata! E só vi o tripé de bastões balançar e servir aos valentes
patrulheiros. Ela é claro deu no pé ou no rabo não sei. Passou meia hora e lá
estava ela de novo a me olhar. Não olhava para nenhum dos big boys Scouts, só
para mim. Caramba, pensei. Será que se apaixonou? Eu namorar uma Cascavel? Eis
que neste interim vai a passos de tartaruga uma grande e deliciosa lesma. Pluf!
Uma bocada e lá foi a lesminha para o fundo do poço da Cascavel.
Estava agora entendendo a jogada da
Dona Cascavel da pele vermelha. Ela sabia que ao meu lado um lauto almoço
sempre aparecia. Fazer o que com sua escolha em me ter como Mestre Cuca
Cobreiro? Melhor explicar a patrulha e deixá-la vaguear pelo campo. Ela não ia
morder ninguém. Foi à conta. A Cascavel da pele vermelha virou o xodó da
patrulha. Alguns até brincavam de pique esconde com ela. Boca Larga subiu em
uma arvore e gritou – Você não me pega! Você não me pega! Coitado, só viu
quando a Cascavel da pele vermelha começou a se enroscar no troco e ele pulou
de uma altura de mais de dez metros. Nada demais. Apenas uma luxação que nós
grandes socorristas que éramos o tratamos melhores que os médicos importados do
estrangeiro.
Durante os quatro dias de campo nossa
amiga permaneceu lá. Quando fazíamos o sinal Escoteiro para ela, em troca
balançava seu chocalho. No último dia vi que ela tinha engordado e já nem ligava
mais para os girinos, sapinhos e outros bichos e insetos e só queria dormitar
na minha barraca. Ficava lá horas e horas e até acostumei com ela à noite
dormindo no pé da minha cama. Isto mesmo. Uma cama! Naquela época sempre
fazíamos uma para nós. Época boa, bom recordar. Mas enfim, o último dia chegou.
Formada a patrulha em frente onde estava arvorada a bandeira, chegou a hora do
adeus. – Lobos! A Bandeira em saudação! No pé da arvore onde estava arvorada a
bandeira a Cascavel da pele vermelha acompanhava a cerimonia. Tudo desmontado e
já ensacado nas bicicletas era se despedir do local e se mandar. Seriam mais de
vinte e cinco quilômetros a percorrer. Saindo às cinco da tarde no mais tardar às
oito da noite estaríamos em casa.
Olhei para trás e vi a Cascavel
tentando nos acompanhar. Não deu. Pegamos uma descida que dava para fazer até cinquenta
quilômetros por hora. Nem lembrava mais da Cascavel da pele vermelha e na
segunda quando voltava da escola uma surpresa. No portão da minha casa lá estava
a minha querida amiga a Cascavel da Pele vermelha. Como ela achou a minha casa
não sei explicar. Expliquei a mamãe e ao papai como ela era. Minhas duas irmãs
sorriram. Para dizer a verdade nunca dei alimentação para ela. Morou conosco
por muitos anos. Seu Zé Carapinha nosso vizinho foi quem comentou que outra
cascavel estava junto a ela. Partiram em um domingo de verão. Tempos depois
passei a receber a visita dela e seus novos familiares. Uma dezena de cascáveis
ali na porta de casa chocalhando como se estivessem nos cumprimentando. Fizeram
isto por muitos anos até que nunca mais a vi. Por onde anda? Se estiver aqui no
bairro é melhor esquecer. Todos tem medo dela. Se alguém a visse enquanto não a
mandasse para a terra das Cobras Mortas não ficaria satisfeito.
Cobras. E quem tem medo delas? Eu
nunca tive. Sabia como evitar, como pegar, como correr mesmo com as calças na
mão saindo em disparada do Miguel. Faz parte da vida de nós Escoteiros
acampadores. De vez em quando sonho com ela, trocando a pele, engolindo um
sapinho que gemia para sair de sua barriga. Sonho bobo não? É de vez em quando
sinto saudade da minha amiga a Cascavel da pele vermelha. Que onde estiver que esteja
feliz e que viva para sempre se é que não se reencarnou novamente. Risos!
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