Lendas Escoteiras.
O último por do sol.
Eu era Chefe de uma tropa
Escoteira lá no Bairro do Berilo. Não era longe e a pé chegava a menos de
quinze minutos. Era uma boa tropa. Quase não tinha problemas e os Monitores me
ajudavam muito. No grupo havia uma tropa feminina, mas que não caminhava bem.
Só duas patrulhas com doze jovens. Genny a Chefe era muito esforçada. Nilo e
Bartilho eram meus assistentes. Não eram muito frequentes. Não sei se acontece
com todo mundo, mas tem escoteiros tão bem comportados que quase passam
despercebidos. Assim era Waldo. Entrando nos quatorze anos tinha todas as
qualidades que a gente pensa possuir um elevado “Espírito Escoteiro”.
Na Patrulha Quati Waldo era
uma espécie de conselheiro dos demais. Não era o Monitor, mas cativava a todos
pela sua ponderação, pelo seu exemplo não só na tropa como na escola e em sua
vida familiar. Quando eu tinha algum problema na tropa chamava o Waldo. Ele
possuía um jeitinho próprio de conversar que conquistava qualquer um que
estivesse ao seu lado. Não foi minha surpresa que um sábado de maio ao chegar à
sede não vi o Waldo. Era o primeiro a chegar e o último a sair. Perguntei ao
Antonio seu Monitor se ele sabia de alguma coisa. Não sabia. Pensei comigo – Deve
ter sido o motivo muito forte para ele ter faltado. Fiquei de ligar para ele ou
seus pais para saber se uma gripe o impediu de ir à reunião. Quem atendeu foi
sua mãe. – Chefe, o melhor é o Senhor vir aqui em casa. Não dá para falar por
telefone.
Só na quinta deu para ir até
lá. Eu estava preocupadíssimo. O que seria? A Mãe dona Aurora e o pai seu
Rodolpho me receberam na porta. Estavam tristes e taciturnos. – Chefe, falou
dona Aurora, Waldo me pediu para ele mesmo dizer. Acho que o Senhor deve ficar
prevenido. A notícia vai chocá-lo e muito. – Vi que lagrimas caiam dos olhos de
ambos. O Senhor Rodolpho estava com a voz embargada. Subi ao quarto de Waldo,
ele me esperava sentado na cama. Senti nele um sorriso tênue e sua voz que já era
baixa de natureza estava rouca. Seus cabelos estavam caindo e aquilo me
assustou. – Olá Chefe, Sempre Alerta! Ele tinha ficado em pé. Dei-lhe um aperto
de mão e um abraço. – Waldo, todos estão sentindo muito sua falta e as saudades
são grandes. Ele sorriu de leve. – É Chefe, vai ser difícil minha volta. Vou
direto ao assunto. Melhor ser honesto com o Senhor. Estou com Leucemia no
cérebro. O médico disse para minha mãe que eu tenho no máximo quatro meses de
vida.
Foi como se eu tivesse
levado um soco, uma pancada. Fiquei chocado. Sentei em sua cama. – Calma Chefe,
isto acontece com um e outro, eu fui o escolhido por Deus desta vez e sorriu. –
Meu Deus! Pensei. Que calma deste garoto! Incrível! – Olhe Chefe, eu convenci
minha mãe. Ela e meu pai não queriam, mas eu gostaria antes de ir me encontrar
com meus ancestrais lá na vivenda de Capella, eu queria ir ao acampamento do
próximo mês no Vale dos Sinos. – Mas como Waldo? Você mal fica em pé e nem pode
andar direito! – Eu sei Chefe, mas eu preciso. Não posso partir sem ver meu
último pôr do sol nas escarpas cintilantes. - Me lembrei do que ele falava. Lá
das escarpas o pôr do sol era maravilhoso. O mais lindo que tinha visto. Eu
nunca pensei que ele pudesse lembrar e nem eu mesmo lembrava mais. Olhei para
Waldo. Não podia negar aquele último favor. Se ele queria eu não iria dizer
não.
Combinei com seus pais
de passar lá no dia marcado pela manhã para pegá-lo. Não disse nada para a
tropa e nem para os chefes. Insisti para que ninguém faltasse. Queria dar a ele
uma despedida inesquecível. Seria o maior Fogo de Conselho que eu iria dirigir
e ele participando. – Passei lá no dia determinado. No local do acampamento ele
insistiu em ficar com sua Patrulha. Estava tremendo, fraquejava, mas dizia que iria
dormir na barraca da Patrulha. Poderia ter armado uma barraca só para ele, mas
ele foi enfático em ficar na patrulha e não queria dormir sozinho. – Chefe, é
câncer! E ria. Nada mais que o cancerzinho idiota. Não vai ter perigo para
ninguém. Ele não é transmitido assim. Não é contagioso! – Menino! Que Escoteiro
era aquele? Waldo de quatorze anos me dando lição?
Eu tinha levado uma
cadeira de praia para ele ficar sentado. O dia que ele quisesse eu o levaria em
minhas costas até as Escarpas Cintilantes. Ele recusou a cadeira. Vou fazer a
minha de madeira Chefe. Devagar mas vou fazer. A Patrulha viu que ele estava
doente. Disse para ela que ele estava se recuperando de uma forte pneumonia.
Ele quase não participava das atividades, mas ajudava na cozinha sempre. Fez
uma bela cadeira. Sentava e fechava os olhos. Seus lábios entreabertos pareciam
sorrir. No penúltimo dia vi que ele respirava com dificuldade. – Waldo, eu vou
levá-lo para sua casa. – Chefe nem pensar. Me leve agora até as Escarpas
Cintilantes. Meu tempo está se esvaindo.
Fui sozinho com
ele. Em principio foi andando depois vi que não aguentava. O coloquei no colo.
Uma palha de tão magro. Em menos de meia hora chegamos. Sentei junto com ele na
barranca que dava para todo o Vale dos Sinos. Um espetáculo a parte. Deviam ser
umas cinco e meia da tarde. Chefe eu posso fazer meu último pedido? Claro meu
amigo. Claro. Quando eu estiver sendo preparado para seguir para a terra dos
meus ancestrais no campo santo, eu não quero que cantem a canção da despedida.
Cantem todas aquelas alegres que sempre cantamos, para que eu tenha boas
lembranças. O sol foi aos poucos tentando se esconder atrás das montanhas do
Grilo Feliz. Waldo sorria. Não tirava os olhos. Eu engasgado. Danação! Eu não
era como ele. Estava difícil aguentar. Queria chorar e não podia. Não podia
chorar naquele instante. Não podia. Eu sabia que eram seus últimos momentos.
Waldo me olhou. Piscou os olhos e me disse – Chefe foi a maior alegria que já
tive. Vou levar para sempre esta lembrança comigo. Obrigado Chefe. Obrigado.
Foi aos poucos deitando no meu colo. Esticou suas perninhas secas. Waldo morreu
sorrindo no meu colo naquele anoitecer frio de junho. Ficou ali imóvel como se
estivesse dormindo.
Fiquei ali chorando por
muito tempo abraçado ao corpo de Waldo. Alguém bateu no meu ombro. Olhei e não
vi ninguém. Lá onde o sol se pôs vi uma nuvem branca brilhante que logo
desapareceu. Desci as escarpas com ele no colo. Uma eternidade até chegar ao
acampamento. Uma dor profunda. Toda a tropa chorava. Voltei para a cidade. Não
chorava mais. Meu coração sumiu. Minha vontade não era minha. Naquele momento
achei que eu também tinha morrido com o Waldo. No dia seguinte estávamos todos
na sua exéquias. Cantamos ao som de um violão a Stoldola, Avante Escoteiro, Lá
ao longe muito distante e outras. Todos cantavam com vigor escoteiro. Muitos
choravam. Eu também. Não dava para segurar. Os anos passaram. Nunca me esqueci
de Waldo. Nunca me apareceu em sonhos. Nunca falou comigo em espírito. Deve
estar feliz, muito feliz em Capella, a terra dos seus ancestrais.