Lendas
escoteiras
O solitário
Eddy. O leão Branco da Montanha dos Sete Cavalos.
“Azanka, Malenka, Lelenka -
Lita, kalita Zazá – Rá, rá, rá, Raposa”! Ninguém esquece. O grito de patrulha
de quem já foi um patrulheiro fica marcado para sempre. Eu era um deles, da
Raposa. Um ano e meio na tropa. Era meu mundo naquela época. Não havia outro. O
escotismo para mim estava no meu sangue, na minha alma e no meu coração.
Naquela quinta do mês de julho, lá pelos idos de 1952 combinamos com o Seu Leôncio
de pegar uma carona em seu Carro de Boi até o seu sítio, nas proximidades da
Colina dos Sete Cavalos. O Chefe Jessé amigo dele aprovou um acampamento nosso
em suas terras de seis dias. Prometeu passar por lá pelo menos duas vezes e Seu
Leôncio disse que tomaria conta de nós.
Quem um dia teve a
felicidade de viajar num carro de boi, Jamais esqueceu. Aquele zumbido infernal
com o tempo é como se fosse uma suave melodia de uma recordação sem igual.
Foram duas horas e meia de sorrisos, e a gente ficava cantando, gritando, dando
vivas e olhando a Canga, o Canzil, os Arreios, o Cabeçalho, e tentando
descobrir o cantar das rodas no Cocão, na Cheda, no Recavem e tantas coisas
lindas que compõe o carro de boi. Seu Leôncio era bom carreiro. Usava com
maestria a vara do ferrão com dois guizos sem machucar os bois. Chegamos à
subida das Colinas dos Sete Cavalos lá pelas onze da manhã. Trabalho duro.
Armar campo. Mesa, toldos, fogão suspenso, lenheiro, aguadeiro e o Jairinho era
muito bom na construção de um pórtico.
Eu gostava daquela Patrulha.
Éramos amigos de verdade. Depois do jantar ainda à tardinha, sentados no chão e
tomando um cafezinho próximo à mesa (faltavam os bancos) nós levamos o maior
susto. Susto tal que nem correr deu ânimo. Minhas pernas tremiam como se fossem
vara verde. Bem no centro do pórtico um enorme Leão Branco! Isso mesmo! Um Leão
Branco. Parado a nos olhar. Eu comecei a molhar as calças e acho que os demais
também. Lembramos quando o Chefe Jessé nos instruir quando víssemos uma onça. –
Não correr Jamais. Todos olham nos olhos dela. Um de nós passo a passo para
trás tenta dar a volta. Sobe em uma árvore e lá grita, Faz barulho para chamar
a atenção do animal. Quando conseguisse todos corriam e subiam na primeira
árvore que encontrassem. Eu era o que estava mais atrás. Não fiz nada disto. Um
medo terrível. Meu corpo parecia um tronco fincado no chão. Diabos! Não sei o
que deu em Marino. Como se estivesse hipnotizado foi devagarinho até o leão.
Ele afagou sua juba. O Leão Lambeu os pés de Marino. Ninguém acreditava no que
via.
Assim começou a fantástica
amizade de sete escoteiros e um Leão Branco. Marino o chamou de Eddy. O dia
inteiro ele brincava conosco em nosso campo de Patrulha. Chegou até a nadar
junto a nós no córrego da Canoa Quebrada. A noite ele sumia para bem de
manhãzinha voltar. Muitas vezes ainda dormindo ele abria as portas das barracas
e nos lambia fazendo cocegas. Amei aquele Leão. Ninguém pensou o que ele
estaria fazendo ali. Ninguém lembrou como ele se alimentava. No sábado Seu
Leôncio viu. Assustou. Pegamos na mão dele e o levamos até o Eddy. Ele não
acreditava. Manso como um potrinho recém-nascido. Conversou com nosso Monitor.
Natanael nos contou depois. Eddy estava matando para comer bezerros e pequenas
ovelhas dos fazendeiros da redondeza. Queriam matá-lo. Eles sabiam que ele
havia fugido do circo Garcia há cinco meses. Tentaram capturá-lo e até alguns
homens armados percorreram os montes, vales, campinas e tantos outros lugares
tentando encontrá-lo e matá-lo e não conseguiram.
Eu não podia acreditar.
Matar o Eddy? Nunca. Preferia morrer com ele. No domingo pela manhã chegaram
mais de vinte homens armados junto com Seu Leôncio. Eddy estava conosco
brincando. Gritaram para sairmos de perto. Eu não saí. Agarrei o pescoço de
Eddy. Ele me deu um puxão e foi correndo em cima dos homens armados. Um
verdadeiro tiroteio. Nós gritávamos para não matá-lo. Eddy gemeu forte, virou
para nós e como se fosse um último adeus abanou seu rabo e mexeu com sua enorme
juba. Caiu morto no chão crivado de balas. Tinha sangue em todo seu corpo. Eu
corri e fiquei abraçado com Eddy. Eu gritava e chorava. Chamava os homens de
assassinos. – Mataram meu amigo! Malditos! Vão para o inferno! Não sabia o que
pensar, coisas de meninos coisa de escoteiros que amam os animais.
Durante vários meses nossa
Patrulha não sabia o que falar. Nas reuniões ficávamos por muito tempo em nosso
canto de patrulha, calados sem nada dizer a não ser ter os olhos vermelhos e
cheio de lágrimas. De vez em quando um olhava para o outro e soluçava forte.
Papai e Mamãe tentaram me consolar. Tentaram explicar que um leão tem um alto
custo para alimentar. Come mais de oito quilos de carne por dia. Ele estava
matando os animais dos fazendeiros. Nada. Isto para mim nada adiantava. Eu amei
o Eddy enquanto vivo e o amava agora também.
“Azanka, Malenka, Lelenka - Lita,
kalita Zazá – Rá rá rá, Raposa”! O tempo passou. Mas sempre me lembrava do
Eddy. Um dia encontramos toda a Patrulha no Bar do Elias. Já adultos. Eu com
mais de vinte e cinco anos. Tomamos varias cervejas e comemos linguicinhas
picadinha com cebolas fritas, famosas na cidade. E quem se lembra do Eddy? Perguntou
Afonsinho. Pronto. Marmanjos chorando. Quem nos visse naquela mesa iria ver
sete marmanjos chorando. Ficamos no bar por mais de cinco horas, sempre a
lembrar dos belos dias que passamos com o Eddy. E triste ter belas histórias
para contar como esta sem um final feliz. Um Leão Branco que vivia na Montanha
dos Sete Cavalos. Nunca mais voltamos lá. Para que? Para chorar? Para
lembrar-nos de um Leão que amamos e que nos tiraram assim? Hoje sei que foi a
melhor decisão. Mas lá no fundo do meu coração eu não aceito isto. Como
conviver com o Eddy para sempre eu não tinha explicação. Mas sua morte foi dura
demais para enfrentar.
“Azanka, Malenka, Lelenka - Lita,
kalita Zazá – Rá, rá, rá, Raposa”! Minha Patrulha. Patrulha que amei por muitos
anos. Patrulha com belas histórias que nos marcaram para sempre. Marquito,
Marino, Natanael, Jovelino, Afonsinho, Jairinho e eu. Onde andam vocês?
Saudades de todos. Imensas Saudades também do Eddy. O Leão Branco da Montanha
dos Sete Cavalos que amei e ficou para sempre no meu coração.
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